segunda-feira, agosto 02, 2004

Crítica: Hana-Bi - Fogos de Artifício

"Existencialismo numa linguagem policial"

Por Carina Rabelo

Nas primeiras cenas de Hana-Bi, o espectador pode pensar que encontra-se diante de mais um filme policial padrão, com direito a todo o pacote de tiroteios, explosivos e sangue. Mas, curiosamente, a violência na qual a narrativa se propõe a retratar nesta obra apenas serve como o pano de fundo para um roteiro que prioriza os dramas humanos, na perspectiva de um diretor inovador, numa linguagem incomum. O filme, estrelado, escrito e dirigido por Takeshi Kitano, entitulado em português como “Fogos de Artifício” foi premiado com o leão de ouro na categoria de melhor filme no Festival de Veneza de 1997. Também responsável pela montagem, Takeshi elaborou uma obra peculiar no gênero de ação. Nishi, personagem interpretado por Kitano, perdeu sua filha com cinco anos, sofre por ter uma mulher com câncer e luta para fazer justiça aos seus companheiros: Tanaka, assassinado pelos gângsters da máfia japonesa Yazuca, e Horibe, que ficou paraplégico após um tiroteio com os mesmos mafiosos. Até aí, mais um argumento fílmico tradicional, semelhante a qualquer romance policial de Hollywood. O diferencial de Hana-Bi está justamente na forma em que o argumento é desenvolvido.

Comparado pelos críticos de cinema como um novo Quentin Tarantino ou Clint Eastwood, Kitano trabalha o roteiro de forma bastante peculiar. As cenas de luta praticamente não acontecem. Seu foco está mais no ‘resultado’ dos ataques do que nas peripécias e balés da violência. Um soco no nariz é capaz de gerar sangue suficiente para inundar toda a tela. Os diálogos entre os personagens são substituídos pelo silêncio na maior parte da narrativa. Planos longos favorecem à contemplação necessária. Os elementos de cena são estáticos como um quadro e devem ser apreciados como tal, pois oferecem amplas possibilidades de interpretação. Os olhares substituem os diálogos e os quadros pintados pelo inválido Horibe expressam a verdadeira natureza da obra fílmica.

As cores são intensamente exploradas. O vermelho do sangue dos gângsters, o azul do mar que embala as últimas cenas e a neve que corre solta como um oceano de tinta branca. A composição de cores e imagens revela muito mais do que qualquer personagem. Através dos quadros - pintados pelo próprio Kitano - a história se desenrola. Os animais e figuras pintadas não possuem

rostos, assim como os gângsters: não importa quem são individualmente, o que está em jogo é aquilo que representam. A fotografia é particularmente rica, assemelhando-se a grandes quadros, rasgados pelas ações dos personagens.

Por que as flores?

Os ideogramas japoneses, vistos de longe, parecem pequenas flores e, assim como elas, favorecem à interpretação, não revelando de imediato aquilo que significam. Os animais e pessoas nos quadros que cercam a narrativa apresentam seus rostos substituídos por tulipas, kanangas e rosas. Estes elementos são utilizados para ilustrar a contraposição entre a violência da máfia japonesa e a ternura que envolve a relação entre os personagens. O afeto não se dá numa linguagem ocidental, percebe-se claramente o estilo de vida e de afetividade no padrão japonês. Poucas palavras, poucos abraços, companheirismo, dedicação e lealdade. Devido ao lirismo da narrativa, embebido pela estética da violência, há uma nítida sensação de paz na apreciação. As pinturas, as flores, a neve e a pescaria no lago são algumas das opções de enquadramento que quebram a crueza das mortes. Trata-se de um filme intimista, travestido de elementos de ação e linguagem policial.

Nishi mata pessoas à sangue frio, numa inabalável indiferença. Mata rapidamente... quase um Bruce Lee ou um justiceiro dos clichês norte-americanos. Mas a sua violência não se dá por meras questões de dívidas financeiras com os agiotas da máfia, é o resultado de um vazio vivenciado por ele e pelos demais personagens. Sua mulher com leucemia representa o lado mais puro de Nishi, pois apenas ao lado dela reside a sua verdadeira paz. Horibe, solitário e abandonado pela família após perder os movimentos, tenta encontrar na pintura uma forma de vencer a depressão. As tragédias ocorridas com os personagens permitem que Nishi, aparentemente frio e cruel, sinta a necessidade de demonstrar o seu amor, lealdade e generosidade por aqueles que lhe são caros. Há pouca comunicação entre os personagens. Não que haja uma dificuldade no diálogo, mas há uma escolha pelo silêncio.

Takeshi Kitano utilizou um estilo narrativo bastante peculiar. Aborda o existencialismo humano mesclando a necessidade de sobrevivência perante às adversidades e a morte como a única possibilidade para a verdadeira libertação. Utilizando figuras estilizadas de mafiosos e agiotas, consegue ir além das lutas e combates, através dos elementos artísticos que expressam os conflitos numa perspectiva filosófica. Os quadros não só manifestam os anseios de vida e de morte dos personagens como também revelam uma opção narrativa original na estruturação dos acontecimentos. Kitano assemelha-se a Tarantino na banalização da violência e na caricatura dos personagens, mas, certamente, foi muito mais ousado do que o americano, quando recorre às artes plásticas na ilustração da aspereza das relações humanas e dos dramas existenciais.

2 Comments:

Blogger Pedro Dell'Orto said...

Ótima análise sobre o filme. Estou escrevendo uma e pesquisando na internet algumas leituras sobre o filme. Sua tese concorda com a que estou desenvolvendo e seu texto está muito bem escrito.

3 de dezembro de 2008 às 19:07  
Blogger cleidebrag said...

Existe uma sutileza no nome do filme, no original, que escapa a quem não conhece a escrita japoneza.
A palavra hana-bi - usada para designar fogos de artifício - é formada por dois caracteres, cuja tradução individual é "flor" e "fogo". Um paradoxo evidente nas cenas que se intercalam no desenrolar da história.

24 de outubro de 2009 às 03:28  

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